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domingo, 8 de novembro de 2009

Extratos de uma obra inacabada.



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III

Confesso mais que o devaneio está sob ordem da efervescência da modernidade. E assim em conflito com a abertura da liberdade constrangida – e agora vingativa; ou no marasmo do coito com todas as tardes deitadas no chá da adaptação veraz.

É tão gigante o Universo que é minúsculo. É cabível da razão qualquer que se decida até em valor da idéia volúvel. É pai e mãe dos planetas da ignorância; é acolhedor – e é a bruxa das maçãs envenenadas, e o desprezível homem da esquina, à espreita da criança solitária, vinda do colégio às cinco horas. Tão gigante e amado por sê-lo: os números já foram assimilados.

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V

Do banheiro pude ouvir ainda mais alguns gritos; rapaz audaz! Um óbice à minha ciência talvez, mas já lhe tinha absorvido o método outrora. Agora é só inconstância do dia, um pouco de impaciência – aí sobra só a reticência vaga que lhe acaba por furtar o fio do método, mas audaz! E teimava novamente, mergulhado no mar do objetivo.

“A paz – disse lá no altar da impassibilidade soberana – é o grão singular!” “Roubara-a em desacato, toxicômano-plúmbeo!, infestando a vida de meu primo.” Ah, lapso! Mal tolhia a mão a seu primo. Não me era muito. Pouco antes, tornara-se apenas um vulto de algumas horas em alguns dias. Fumante que era, andava comigo por aí a fumar um tanto. Conheci-o já assim, pelo menos guerreava a nicotina, ao passo que eu a afluía em lentidão, só pelo aprazer do ato longo.

Verdade que certa vez pus-lhe uma idéia de deliciar-se num saque letal à mente, numa viagem sem âncora – mas só por conceito do veneno e da concepção de nova variedade em seu estado. Também há que a escolha é prova de acordo, então nada me é necessário dizer.

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VIII

Eu fui à procura do passo venenoso, pus me à beira do contexto; inseri-me por impulso só meu, e de minha vontade. O resto fluiu por essa cooperação com o imaginário orbicular, atento às emanações do prazer e da experimentação altiva – o vínculo ritual do sabor único do espaço-tempo-ato de já.

Provei sozinho. Tornei-me envolto à margem obscura da consciência e da conseqüência. Dei o salto pela cidade, enlouquecido e só. Sem afeto que se caiba a ser outro qualquer, nem aberto ao atrevimento da calúnia morna, nem ao ato fúnebre da raça que policia em armas a si mesma.

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X

Peguei o uniforme do teu colo, morena. Fui vê-lo; tocá-lo de perto, e se fosse-o em olor de maracujá selvagem, ou o recuo de tua pele suada, teria-me atraído e conquistado. Por fim, fora só refúgio da vontade e da criatividade cáustica – porque de teu corpo, aliado só o declínio primaveril. Ainda pomposa, ainda em mão ao desfile corpóreo, e a três ou quatro passos do mergulho à frustração psicológica: a grande autonomia do ser.
        
Fatos sobrepõem outros fatos – a partícula da adaptação temporal é posta a golpe! As faces são faces – e sobrepostas também: cansam a contagem dos dedos do senso e dos dedos da dívida comum entre irmãos. O dilúvio das relações é alçado às velas da metamorfose; a tensão pelo espírito feminino, pela vibração dos corpos, a dança dos tóxicos... – satirizo a minha quebra de sentido; passeio pelas folhas da árvore perdida, ladeada à entrada do circo. Eu andei até lá.

XI

Eu sonho com alguns  gnomos. São como representações vivas, de um roxo escuro – e um pouco de verde negro. A música. A sensação do piano na casa do inverno etéreo e onírico. O perigo da sensibilidade, enamorada dos gnomos do jardim – naquele passo da garota que some pelos arbustos, da beleza de uns cachos inocentes, ainda mais jovens que a incerteza do sexo-homem. Eu vejo os gnomos capturando-a. Levando-a pelos corredores em pedras envelhecidas, mordidas. Com os braços presos, pernas amarradas; à marcha da concentração diabólica dos seres do jardim obscuro.
        
Vibra-me a mente o som dos machados rústicos. Lapso grosso que espanca a terra, que deforma o privilégio do solo secreto escondido da afetação extra-natural. Numa fila de lentíssima ordem; há em vista o desespero do absoluto – os seres decaídos arrastando o círculo infinito de uma mola artesanal. A fila dos caldeirões de fogo vibrantes, lancinantes. O aspecto do aroma esquecido da luz alva, os dedos em sujeira explícita do trabalho das madrugadas subterrâneas: é o vulto escondido ali, sem reflexo pela lua, sem apego ao ar da superfície, em mistério do erotismo perverso.

Não há semente de bondade, ou maldade. Sem o perdão – e a educação áspera e rigorosa. O que há é temível como assim em face, pela delícia do caso francês, e do tribalismo cabal, excitante e desconhecido: o toque carnívoro que consome a carne, as paredes rígidas que privam a expressão do grito – o canibalismo em afronta à voz alta, sem interrupção, transcorrendo em estímulo de dor.

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XIII

Vez em quando engana-nos o passar da noite: sentamos ao esquecimento da luz, às obrigações que perdem a validade no joguete da aurora noctâmbula. E descemos pelo poço da comunhão das sensações, víboras do salto feminino – que lhes engana e encanta a todos, ao ladear-me a face, com esse cigarro que trinca em meus dentes e lhes esconde o fluxo da mente sem tempo.

E assim – sem vulto algum que me prejudique o lírio, navego às encostas em incentivo que acorde meu pulso pelo sangue: desmanchando-me daí em teu corpo, estendido por decúbito. Molhando-me os lábios num vermelho-volúpia, consternação. A vileza do agrado em bom-horário.

Converso-me, tiro a dianteira do fato exposto à carne crua – é tanto mais que há por expor! E muito mais da carne crua que não filtra a lógica rápida e fogo. Converso-me, pois, em voz alta, que escuta-se mesmo pelo senso avulso de se procurar ouvir. Mas lá que me é mais fundo quando ouço a mim, e à altura da lógica em debate. Que dirás? Ainda é mais do tempo retirante – quando estou solto da marra frígida do socorro medicinal, e vou sozinho a segurar minha própria mão. Eu me confesso, pálido da culpa morna: não há resgate da realidade que se desmanche à idéia do sangue devasso.

XIV

O que são estas línguas todas que vibram em minha boca? São fruto, e são desespero. E ainda: só o desespero é são! Calmo, controlado e esquizofrênico sem-parada, sem tempo de ação: aproveitando-se do congestionamento de ações e ações. Eis-me! Eis a imensidão do vazio. Uma mão é um olho fatigado, a outra mão segura um pedaço magro de madeira, dá um piparote qualquer, e lança ao espaço – sem esforço algum.

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Aos meses finais de 2008.

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